quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Sensorial.

E ali ela estava novamente.
Dia comum e produtivo, que enfim estava chegando ao fim.


     Se sentou no chão, como de costume naquele lugar, e esperou.
Esperar... estava tão acostumada àquela situação, que decidiu fazer daquela uma oportunidade para evoluir.


     E como toda reação começa com um estímulo sensorial, hoje era o dia de sentir. 






     O primeiro estímulo que veio foi o auditivo. Ela ouvia, prestava atenção. Era como se estivesse em uma caverna fechada, em dia de chuva. E havia muitos predadores lá dentro... leões, tigres, javalis, dinossauros. Feras insandecidas, rugindo e roncando alto. O barulho ensurdecedor ressoava alto, assustando aqueles que não estavam acostumados. As feras pareciam estar dentro do seu corpo, pareciam querer tomar parte dela, fazendo com que ela vibrasse de acordo com o ritmo das ondas mecânicas que deles saíam.


     Sentia o cheiro de feras cansadas, que trabalharam em suas funções o dia todo. Não era um cheiro agradável, mas ele a fez lembrar dos esforços que fez durante o dia, e dos esforços que fazia todos os dias. E por incrível que pareça, aquele cheiro horrível de fumaça e borracha queimada finalmente serviu para algo bom... E ela se sentiu recompensada, gratificada.

     Sentia dor, sentia aquele lugar comprimindo-a aos poucos. E sentia o contato das pessoas que também esperavam. Sentia o peso dos livros em seu colo, sentiu o ar quente e viciado passando por seu pescoço. Sentiu seu corpo sobre a calçada semi-limpa, sentiu o lugar. era como se ele impregnasse em sua pele, como se não saísse, mesmo debaixo da água morna que a esperava em casa. Mas ele realmente não sairia... ficaria ali, como lembrança das experiências que teve, e que ainda teria. "Muita água rola debaixo dessa ponte, antes que você consiga o que quer", disse o Pedro. Ele tinha razão, mas provavelmente não sabia o que ela sentia no momento.


     Sentia-se tonta, desequilibrada, como se cada parte do seu corpo estivesse fora do lugar. Era um sentimento comum, mas que precisava ser abolido com urgência. E quem diria que aquele lugar escuro, mal feito e desagradável iria ajudá-la, quem diria que aquelas feras poderiam mudar seu alinhamento físico e mental... Talvez um dia.


     Assim, ela ativou seus olhos. E as via, avançando no asfalto como se não houvesse nada mais empolgante que a liberdade de se mover. Não, não havia naquele momento...
Feras grandes, imponentes, ora bonitas, ora deprimentes. Em suas testas piscavam luzes verdes e alaranjadas, rotulando o nome e o destino de cada um dos predadores. É, embora livres para se mover, eles não tinham escolha... iriam sempre parar no mesmo lugar, indiscutivelmente.
Era a rotina deles, mas era uma rotina diferente a cada dia, assim como a dela.




     Era uma caverna escura, cheia de pessoas apressadas, estressadas, cansadas e reclamantes. Duvidou que alguém estivesse vendo o lugar como ela via agora. E viu com carinho aquele lugar tenebroso, feio e triste. 




     Sentiu pena das feras. Elas não tinham escolha, mas ela tinha. Não as odiava pelo mal que faziam, considerou o bem que elas faziam para muitas pessoas. Elas lhes davam o direito de ir e vir, embora que truncado. As feras davam a ela a sensação de liberdade, ainda que presa e dependente. Mostravam, todos os dias, as coisas belas (e também as feias) de uma parte da cidade; mas era só de uma parte da cidade. As feras a engoliam com carinho, esperavam pacientemente todas as pessoas serem engolidas, e levavam-as aonde queriam ir.


     O que ganhariam em troca? Um pouco de energia. E quando a vida das feras chegasse ao fim, elas se tornariam outras feras, outros itens. E era o mesmo que ela faria, quando seu tempo se esgotasse... 
E pensou nas pessoas que esgotaram seu tempo. Será que alguém conseguiu ponderar da maneira que ela fazia agora? 
Feras insandecidas e incompreendidas. Se identificou, por um longo momento. Mas havia uma diferença: As feras não tinham escolha, viviam vagamente, com um objetivo imutável. Ela não.


     Compreendeu as feras, no momento em que a sua chegou. De tanto esperá-la todos esses dias, aprendeu que o ronronar dela era diferente das outras. Parecia o tom de uma mãe brava, mas carinhosa. E a fera caminhava em sua direção, magistralmente, parando em sua frente, como fazia todos os dias. Deixou que se sentasse em um de seus colos, e então, rumou ao seu destino inquestionável, levando-a em uma carona paga. 
Parecia suave em seu caminhar, aliviada por finalmente ser compreendida.




Então, ela, assim como a fera, sentiu-se bem, sabendo que não veria novamente aquele lugar. Não da mesma forma que via antes.






A espera, pela primeira vez, resultou em algo produtivo.  Ela tinha começado a reagir.





(Post Escrito ao som de: Sout it out loud - Oasis)

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