"Pediram-lhe palavras. Há algum tempo já, ela só tem
usado as roubadas, de poemas e canções. Debruça-se sobre as palavras alheias,
que a traduzem tão bem que ela se comove de se ver ali, desnuda e descrita.
Sempre achou que empunhava as palavras tão magistralmente e hoje elas lhe
faltam. Ou sobram. Nunca na medida. Como o que ela sente, também tão desmedido.
Tão desafiador, desestruturador de tudo o que ela sempre pensou ser, que viveu
até aqui, que acreditou.
Ele faz doerem nela
dores que ela nem sabia que existiam. E a faz gozar prazeres de que tampouco desconfiava. Perfurantes. Ele
confronta suas teorias sobre amor e liberdade, testa seus limites, grava no seu
corpo e na sua memória as sensações mais extasiantes, enquanto crava nela o
ferrão da dúvida, os dentes do ciúme, as unhas da inquietação. Fugidio,
esquivo, tantalizante. Ela? Experimenta, permite-se, tenta, testa. Alonga. Paga
pra ver.
Já partiu, já voltou,
chora muito, ri outro tanto, pensa demais. Tudo demais. Cores, dores, luzes,
faltas, explosões, desejos. Esperas. Essa coisa de pensar sobre o tempo. Muito
cedo, tarde demais, intervalos, ocasiões, agora, nunca, sempre, velocidade,
duração, logo, quando, tempos paralelos, tempos comprimidos, tempo. E espaços.
Frestas. Onde. Como.
…..
Os olhos escuros que ficam quase cor de âmbar no amor. Ela poderia ir morar naqueles olhos para
sempre. Reduzida à carne sob as unhas, escondida nos sulcos da pele, no meio
dos pelos, entranhada no suor dele, no sêmen, no gosto doce e úmido da boca.
…..
Uma coisa é saber da falta e da angústia, mas viver todo o
tempo diante da face crua dessa falta, na ausência de ar e no espanto desse
buraco que nos constitui, também pode ser sintoma. Por isso, a gente cria uns
véus, lança umas rendas diáfanas diante da realidade, usa uns filtros no
enquadramento, para adoçar arestas, permitir caminhos.
Entretanto. O caminho
que ela percorre é escuro, instável. A cada passo, a incerteza. Cair no vazio
ou criar, no próprio ato do passo, outro pedaço da estrada? Estrada que ela nem
sabe se existe, ou onde vai dar. Claro que não existe. Nenhuma estrada existe a
priori. Mas a gente às vezes inventa, projeta, imagina – lança os tais véus – e
isso é muito reconfortante. Fazer planos, sonhar, construir futuros. Ainda que
só de brincadeira, ainda que sabendo da ilusão. Adora um amor inventado.
Por um tempo viveu um amor assim, que prometia ser absoluto,
completo. Foi tão bom acreditar. E tão sufocante manter. Hoje, experimenta a
exacerbação da transitoriedade. De um lado, a ilusão de completude, da entrega
que cobra, impiedosa, o preço da liberdade; de outro, o desconforto da
impermanência, permanentemente desfraldada diante de si como um desamparo. No
meio, ela. Um tanto atordoada. Que já não sabe o que deseja. Ou sabe só o que deseja,
sem lógica ou juízo. O corpo dele no seu, as mãos, a boca, as pernas, os olhos.
Os olhos dele nos seus, o fogo, o riso, a dor, a promessa muda e incompleta. Só
hoje, só mais um dia, só até o próximo encontro. Depois a gente vê o que
faz."
Por mmerteuil, em Biscate Social Club.
(Acesso em
http://biscatesocialclub.com.br/2014/07/depois-gente-ve/)